Episódio 2 - Transcrição
Este episódio contém violência e linguagem imprópria
No dia 12 de abril de 2023, eu fui dirigindo do Centro de Curitiba em direção a São José dos Pinhais. Eu cruzei mais de 8 km pela Avenida Comendador Franco, que todo mundo conhece como Avenida das Torres.
Se você já veio para Curitiba de avião e pousou no Afonso Pena, ou chegou de carro vindo de Santa Catarina, provavelmente fez o mesmo caminho que eu, só que no sentido contrário.
Na Avenida das Torres tem um portal redondo que cobre as pistas e marca o limite entre as duas cidades. Um pouco antes do portal, do lado direito de quem vai para o aeroporto, fica o Parque São José dos Pinhais.
Era uma quarta-feira, 25 graus, sol entre nuvens, pouco vento… uma tarde de outono para não botar defeito.
Eu podia ter ido até lá para pescar traíra na lagoa, tirar uma selfie no letreiro “Eu Amo São José dos Pinhais”… podia ter ido jogar bola no campinho de areia ou até para ficar vendo os aviões que passam baixinho por ali.
Mas naquela quarta eu fui até o parque para fazer um teste: perguntar se as pessoas sabem que grande parte daquele terreno pertencia ao Athletico Paranaense.
Filipe: Opa, boa tarde, com licença, tudo bom? Posso falar com você rapidinho? Eu sou repórter, estou fazendo uma reportagem sobre o parque e vi que você está com uma camiseta do Athletico.
Torcedor: Verdade.
Filipe: Você mora aqui na região?
Torcedor: Moro na Cidade Jardim, em São José.
Filipe: E, cara, você como athleticano, sabe da história do parque junto com o Athletico?
Torcedor: Não sei, piá, faz pouco tempo que eu tô pra cá, não sou daqui.
Eu fiz essa mesma pergunta para cinco pessoas com até 30 anos. Nenhuma delas sabia que ali ficava o Pavoc (uma sigla para Parque Aquático Vila Olímpica Cornelsen).
E, para ser honesto, antes de começar a pesquisa para esse documentário, eu também não sabia.
Apesar do nome, o Pavoc não era bem um parque aquático.
Mas quando eu perguntei para pessoas mais velhas no parque, a maioria sabia do que eu estava falando. E eu encontrei até alguns sócios do antigo clube, como o pipoqueiro Jairo Gonçalves.
Filipe: O senhor mora aqui na região de São Jairo?
Jairo: Moro?
Filipe: O senhor lembra quando aqui ainda era o Pavoc?
Jairo: Lembro. Desde 75.
Filipe: Desde 75? O senhor frequentava aqui?
Jairo: Frequentava, eu era sócio do Athletico, do Pavoc.
Filipe: Era mesmo? E como é que era a estrutura aqui na época?
Jairo: Eram uns campos e um centro de treinamento, e tinha pedalinho aqui, nessa lagoa aí.
Na mesma tarde, eu interrompi a conversa de duas amigas tomando chimarrão num quiosque à beira da lagoa.
Filipe: Boa tarde, com licença, tudo bom?
– Era a Marilza e a Cida, que moram há décadas em São José e também tinham muita história para contar sobre o velho Pavoc –
Filipe: Lembram o que era aqui antes de ser o Parque São José?
Marilza: Sim, aqui era um clube, eu era sócia… na época, só tinha piscina, parquinho, tinha um salão, churrasqueira, era básico.
Cida: Não era tão cuidado como é agora.
Marilza: Era básico, era um clube… o clube até era bom.
Cida: O clube eu não frequentava, não era aberto, assim, para a gente ficar, como a gente fica.
Marilza: O clube só entrava quem era sócio.
O Pavoc foi planejado por um coxa-branca para ser um clube social e, ao mesmo tempo, um centro de treinamento do Coritiba – só que acabou indo parar nas mãos do maior rival.
Foi um patrimônio muito importante para o Athletico. Não tanto pelo tempo em que ficou com o clube, mas principalmente pelo momento e pelas circunstâncias em que deixou de ser.
E no meio dessa história toda, claro, tem o dedo de um homem capaz de ver numa área de banhado semi-abandonada uma fonte de renda para mudar os rumos do clube que ele dirigia.
Eu sou Filipe Andretta, jornalista e advogado curitibano, e este é o “Senhor da Razão?”, um documentário não autorizado sobre Mario Celso Petraglia e o Athletico Paranaense.
VINHETA DE ABERTURA
Episódio dois: Futebol é pra quem tem dinheiro
No primeiro episódio, a gente contou a história do menino gaúcho Mario Celso, que quando ainda era piá veio para Curitiba, reprovou no colégio, criou juízo, se formou contador e advogado, casou, virou megaempresário, coordenou campanhas políticas e se tornou uma das pessoas mais poderosas do Paraná nos anos 1990.
Esse contexto todo é importante para entender como um banhado virou clube social e depois mudou a vida dos athleticanos.
Então, como diria o mestre Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos, que fez podcast sobre o Caso Evandro
Ivan Mizanzuk/Projeto Humanos: Se você não ouviu o primeiro episódio, pare, volte e ouça em sequência.
Essa história começa há mais de cem anos com a família Cornelsen, que é um símbolo da rivalidade Athletiba.
O seu Emílio, que foi roupeiro e depois conselheiro do Coxa no início do século passado, teve três filhos batizados com nomes que começam com a letra A, e com Y no meio: Alcyr, Aryon, Ayrton.
Os três jogaram no Coxa. Só que o caçula, Ayrton, mais conhecido como Lolô, virou a casaca e foi jogar no Athletico, onde foi campeão estadual de 1945.
Além de atleta profissional, Lolô Cornelsen se tornou um dos maiores arquitetos modernistas do Brasil. Ele é considerado o inventor da caixa de brita do automobilismo, e desenhou alguns autódromos, como o de Jacarepaguá e o de Curitiba.
Também projetou a Estrada da Graciosa, a Rodovia do Café, o Ferry Boat de Guaratuba e várias outras obras.
Lolô Cornelsen/UFPR TV: No que eu cursei Engenharia, foi na década de 1940. Em 1948, era para concluir o curso. Eu passei por média em quase todas. Tinha um professor que era coxa-branca, e eu jogava no Atlético, ele resolveu me atucanar no último ano, na última prova, no último dia, no dia seguinte ia ter a formatura. E ele me reprovou. Peguei ele na praça no dia que ele me reprovou, dei uma surra muito grande nele. Me levaram preso porque me pegaram no flagrante na Praça Santos Andrade. No dia seguinte era a missa de formatura. Minha noiva foi na missa ‘cadê o Lolô?’, tava preso.
O jovem Lolô Cornelsen gostava de resolver as coisas no braço. Ele também foi preso nos anos 1940 por dar uma surra no senhor Antônio Couto Pereira, então presidente do Coxa, que era militar.
Aryon Cornelsen/Crônicas de um Vovô Coxa: …ele estava na porta. Mas eu enchi… entrei dando porrada nele. Quase matei ele. Estava estrangulando. Me tiraram de cima dele e me levaram preso.
Essa briga aí teve a ver com a rivalidade entre Antônio Couto Pereira e o irmão do meio de Lolô, o Aryon Cornelsen.
O Aryon foi jogador profissional e um dos maiores presidentes do Coxa.
Foi ele quem colocou abaixo as arquibancadas de madeira do antigo estádio Belfort Duarte e ergueu ali, no final dos anos 1950, um gigante de concreto.
Para desgosto do Aryon, o estádio que ele reformou seria rebatizado em 1977 com o nome do desafeto: Major Antônio Couto Pereira.
Mas o Aryon era um empreendedor agitado. Ele tinha planos mais ambiciosos do que apenas reformar o estádio.
Quando o pai morreu, os três filhos herdaram uma área às margens do rio Iguaçu, entre Curitiba e São José dos Pinhais. (Sim, esse é o mesmo rio que cruza o estado e forma as famosas cataratas na fronteira com a Argentina).
Aryon comprou a parte dos irmãos e começou a construir ali um complexo desenhado pelo caçula Lolô.
Foi assim que nasceu nos anos 1960 o Parque Aquático Vila Olímpica Cornelsen, o Pavoc.
A parte social, com salão de festas e piscina, foi construída.
Mas a ideia do Aryon era ampliar o número de campos de futebol e, numa parceria com o Coritiba, investir num hotel de luxo. O Coxa, então, usaria parte dessa estrutura como um centro de treinamento.
Não deu certo.
E para entender por que não deu certo, eu fui até a Praça Santos Andrade, onde o Lolô bateu no professor de engenharia da UFPR.
Mas eu não fui procurar vestígios de sangue de 80 anos atrás. Fui encontrar o jornalista Sandro Moser, que investigou a fundo a treta do Pavoc.
Sandro Moser: O Aryon quis dar um passo à frente, inspirado no que alguns clubes europeus já estavam fazendo nos anos 1960, e criar um patrimônio que além do clube social fosse tipo um CT do time. E daí o Lolô fez o projeto e os caras no Coxa não puderam fazer, não quiseram fazer, por algum motivo, por picuinha política. Aí o Athletico deu um golpe e pegou o patrimônio numa jogada lá, isso nos anos 70, né?
“O Athletico deu um golpe”. Vamos entender melhor isso aí.
A proposta do Aryon era a seguinte: ele ganharia o dinheiro da venda dos 50 mil primeiros títulos societários do Pavoc, e o Coxa ficaria com as mensalidades e uma parte do terreno.
Só que a diretoria alviverde não topou. Achou que o Aryon estava tentando enriquecer às custas do Coxa.
Como todo o projeto tinha sido desenhado para um clube de futebol, o Aryon teve que procurar o Athletico.
E a diretoria rubro-negra gostou da ideia, mas adicionou uma cláusula no contrato: Dez anos para vender os títulos. Depois desse prazo, o Pavoc seria todo do Athletico, não importasse quantos títulos o Aryon conseguisse vender.
Essa cláusula virou uma bomba para o Aryon, como explicou o jornalista Dante Mendonça, no jornal Tribuna, em 2009.
[LEITURA DE DOCUMENTO]
Ocorre que o teor do contrato vazou, chegou como um furacão aos ouvidos de rubro-negros oportunistas que resolveram sabotar o projeto: “Quem comprou não pague, quem não comprou não compre, pois o parque já é nosso”.
E durante nove anos as vendas congelaram. Aryon não conseguiu arrecadar o necessário para viabilizar o projeto e, terminado o tempo de contrato, o complexo acabou indo inteiramente de graça para a Baixada da Água Verde.
O Atlético Paranaense, de sua parte, nunca soube administrar o espaço conseguido de mão beijada do velho inimigo.
Ok, mas o que que o Petraglia tem a ver com isso tudo?
Eu estou chegando lá.
Atenção agora para a linha do tempo: Voltamos para 1970 – um ano feliz para o Athletico.
Com o bigodudo Barcímio Sicupira (o maior artilheiro da história do clube), o Furacão vence o Seleto de Paranaguá por 4×1 e conquista o Campeonato Paranaense, encerrando um jejum de 12 anos.
Narração de Atlético 4×1 Seleto/Rádio Clube: …bola aberta para Nilson, Nilson atrás para Toninho. Recolheu Toninho, bateu para o grande artilheiro Sicupira. Desceu Sicupa. Vai trabalhando pela meia. Tem Gildo pela ponta. Entortou para Gildo. Vai descendo Gildo. No semblante de cada rubro-negro a alegria pela conquista do campeonato. Bateu Sicupira para Nilson, deu para Reinaldo, Toninho vai marcar, chutou, gooool. Não adianta mais. Não adianta mais. Atlético, campeão paranaense. Sucesso rubro-negro. Invadindo o gramado. Invadindo o gramado em Paranaguá. Toninho fez o 4º gol aos 41 minutos e meio.
A história desse time, aliás, foi contada na excelente biografia do Sicupira, escrita pelo Sandro Moser, um dos entrevistados deste episódio, que você ouviu agora há pouco, sobre o Pavoc.
Mas a felicidade rubro-negra parou ali mesmo, em 1970, porque mais um jejum de 12 anos estava a caminho.
A década de 1970 seria um desastre para o Athletico: o Coxa foi hexacampeão paranaense entre 1971 e 1976, e ainda venceu mais dois, em 1978 (numa decisão dramática em três Athletibas), e 1979.
E como o desempenho de um time dentro de campo anda lado a lado com o desempenho das finanças, você pode imaginar como estava a situação do caixa rubro-negro.
Na verdade, talvez você não imagine. A gente não está falando só de jogador com salário atrasado. A gente está falando de o time não treinar porque faltou dinheiro para comprar sabão para lavar o uniforme.
Andretta, você está exagerando!
Estou?
Valmor Zimmermann/Memória Paraná: Eu comecei num dia em que eu li no jornal que o Atlético não tinha treinado porque não tinha dinheiro para comprar sabão para lavar a camisa.
– Esse aí é o senhor Valmor Zimmerman, um dos dirigentes mais importantes da história do Athletico –
Valmor Zimmermann/Memória Paraná: Aí então eu fui até o presidente do clube, fui até a sede e disse ‘isso aqui não é possível’. Ele diz ‘não, pior que é verdade, estamos com telefone cortado’… era uma situação terrível. O finado Lauro Rego Barros era o presidente. Então, reuni um pessoal e fundamos uma organização que chamamos de Retaguarda Atleticana, que passou a arrecadar fundos para começar a ajudar.
Seu Valmor então fundou e liderou a Retaguarda Atleticana – um grupo formado principalmente por empresários que queriam tirar o time do buraco.
Além do próprio Valmor, dono da grandiosa Parnaplast Embalagens, nomes como Salmir Lobato, Valdo Zanetti e Celso Gusso eram da Retaguarda.
Eles chegaram a alugar uma sala comercial na Avenida República Argentina para funcionar como sede do grupo. Juntavam grana, faziam rifa e botavam a mão na massa mesmo para pagar salário, bicho de jogador, conta de luz e todo tipo de cobrança.
E quem entrou um pouco depois na Retaguarda Atleticana, mas ainda em meados da década de 1970, foi o Petraglia.
Com o tempo, esse grupo foi ganhando reconhecimento e prestígio dentro do Athletico.
Os membros viraram conselheiros e foram aos poucos ocupando diretorias no clube.
Até que, em 1984, o seu Valmor assume como presidente, e coloca o Petraglia para fazer aquilo que fazia de melhor.
Valmor Zimmermann: Ele, como torcedor fanático que era, e participava da Retaguarda, quando assumi o clube na primeira gestão minha, convidei ele para ser diretor financeiro. E ele foi de grande valor, porque era um hábil negociador e me ajudou muito nessa primeira gestão minha.
A primeira passagem do Petraglia como diretor financeiro durou pouco, só um ano.
Segundo o Petraglia, ele não tinha condições, tempo, nem vontade para lidar com futebol naquela época.
Mas em 1989 ele volta, desta vez como diretor de Patrimônio.
Nessa passagem, o Petraglia consegue um acordo para encerrar o processo que o Aryon Cornelsen moveu contra o clube.
O Pavoc finalmente seria todo do Athletico, sem pendências.
Só que o Petraglia sabia que as questões jurídicas do Pavoc eram o de menos. O lugar tinha problemas bem piores.
O Athletico até chegou a usar o Pavoc como um centro de treinamento (um CT), principalmente para as categorias de base, hospedando jovens que não tinham casa em Curitiba.
Mas o lugar nunca empolgou, nem como CT, nem como sede social.
Os jogadores preferiam treinar na própria Baixada ou até na praça em frente ao estádio.
E a sociedade curitibana não se animou muito para comprar um título de um clube longe do centro e que, volta e meia, ainda alagava.
Quando você tiver um tempinho, abre um mapa online e procure o zoológico de Curitiba. Veja que ele fica numa zona de banhado na margem do rio Iguaçu.
Se você for acompanhando essa zona verde na direção Norte, vai atravessar a Avenida Marechal Floriano, todo o Parque Náutico até chegar no Parque São José, onde ficava o Pavoc.
Esse mesmo banhado continua pelo Memorial da Imigração Japonesa, cruza os motéis na BR-277, até o Parque das Águas, em Pinhais.
Quando a chuva engrossava, toda essa área ficava embaixo d’água.
José Wille/RPC: Nesse ponto aqui nós estamos bem perto do começo do Rio Iguaçu, e por aquela estaca dá para ter uma ideia do quanto o rio já subiu: quatro metros até agora. Essa mulher improvisou uma longa ponte com tábuas para não ficar isolada. A mercearia do bairro teve que fechar. Muitas casas foram abandonadas, mas há moradores que têm medo de sair e serem roubados.
Quando o Petraglia assume a presidência do Furacão, em 1995, uma das primeiras decisões dele é definir que o Athletico é um clube de futebol, e ponto. Sem outros esportes, sem sede social.
Tá. E que diabos ele fez com o Pavoc?
Petraglia/FOX Sports: Quando nós chegamos, o Athletico tinha uma área, o Pavoc, que era um clube de sócios, de basquete, carnaval… que não servia pra nada, só pra dar prejuízo, briga de sócios de futebol e sócios de outras atividades. Aí houve uma oportunidade: o governo desapropriou para fazer o canal extravasor, uma área de contenção de cheias. E o Athletico foi indenizado.
O Petraglia diz que “houve uma oportunidade”. Mas a gente contou em detalhes no primeiro episódio que ele foi amigo íntimo e coordenador de campanha do Jaime Lerner, que se elegeu governador em 1994. Lembra?
Pois então. Em março de 1995, no seu primeiro ano de mandato, o Lerner decreta a utilidade pública de algumas áreas em volta do rio Iguaçu, que depois são desapropriadas para a construção do Canal Extravasor (uma espécie de rio paralelo que absorve a água excedente nos momentos de cheia).
Com parte dessa indenização, o Petraglia compra uma estância com hotel na Zona Sul e transforma o lugar no CT do Caju, um dos mais modernos do Brasil até hoje.
Aqui, eu preciso fazer uma pausa para ponderar algumas coisas.
Do ponto de vista técnico, a obra do canal extravasor é considerada um sucesso: reduziu muito as enchentes, que eram um problema social e ambiental grave ali na região.
E do ponto de vista jurídico, também ficou tudo ok.
(O Jaime Lerner até seria processado por improbidade por causa do valor na desapropriação de uns terrenos, mas isso em outra obra, que não vem ao caso aqui).
Mas é claro que uma obra estadual justo naquele ponto do rio Iguaçu, onde ficava um terreno do Athletico, presidido pelo parceiro do governador, levantou suspeitas.
[LEITURA DE DOCUMENTO]
Folha de S.Paulo – agosto de 2001
A verba para a compra do CT do Atlético Paranaense ainda hoje é motivo de suspeitas por parte de adversários políticos de Mario Celso Petraglia, homem-forte do clube.
Entre 1995 e 1996, houve uma série de denúncias de irregularidades no negócio, relacionado diretamente com a desapropriação do CT anterior do clube, o Parque Aquático, em São José dos Pinhais.
O dinheiro para o CT do Caju surgiu quando a área do antigo CT foi desapropriada pelo Governo do Paraná para a construção de um canal extravasor para minimizar as frequentes enchentes do rio Iguaçu.
Sendo que o valor pelo metro quadrado pago ao Atlético foi mais de oito vezes maior do que o destinado aos proprietários de terrenos vizinhos, conforme documentos aos quais a Folha teve acesso. No total, o clube recebeu 6,7 milhões de reais pela área de 350 mil metros quadrados – 19 reais e 22 centavos por metro quadrado.
O valor do metro quadrado pago aos outros proprietários da região foi de 2 reais e 38 centavos.
Os opositores de Petraglia associaram a disparidade ao fato de ele ter sido tesoureiro de campanha de Jaime Lerner.
Petraglia não quis falar com a Folha.
A diretoria do Athletico se defendia das acusações alegando que o terreno do Pavoc valia mais que os outros, por causa da boa localização, de frente para a Avenida das Torres.
Além disso, o Pavoc tinha benfeitorias (salão de festas, quadras, piscina) e elas precisavam ser indenizadas.
Bem. Independentemente da controvérsia, o fato é que a atuação do Petraglia deu uma reviravolta na trajetória do Athletico.
Um dirigente comum teria se livrado do Pavoc por qualquer valor, só para deixar de ter prejuízo.
Mas o Petraglia, ligeiro e bem relacionado politicamente, transformou um problema em solução.
Sandro Moser: Veja, é uma movimentação grande, né? Dos governos, uma coisa imobiliária, tem uma questão que é um projeto de desenvolvimento urbano, que é um projeto complexo de Estado, né: acabar com as enchentes. É a confluência de várias coisas que dão certo. No futebol é sempre assim, né? Dizem que a bola não entra por acaso.
–Esse, mais uma vez, é o jornalista Sandro Moser–
Sandro Moser: Ele olhou 5 lances do xadrez à frente e deu um puta de um xeque-mate aí que mudou tudo. Mudou tudo para ele. Se não fosse aquela circunstância, ele ia achar outra maneira, tenho certeza. Mas a diferença dos caras que são os grandes realizadores é essa, cara: ele viu a oportunidade e falou ‘opa, é aqui’.
E tem mais: o Petraglia podia ter pegado a grana da desapropriação e contratado um jogador bem caro, para fazer média com a torcida e talvez até se consagrar com algum título em campo.
Mas investiu num CT novo e nas categorias de base – uma decisão nem um pouco populista e muito melhor para o futuro do clube.
Durante a apuração deste documentário, eu fui mais uma vez a São José dos Pinhais.
E dessa vez eu podia ter ido para comer um dos melhores churrascos da região, mas eu fui mesmo para conversar com o dono da churrascaria Velha Napolitana.
Mauro Singer: Ah, é esse rapaz que veio falar comigo?
Filipe: E aí, seu Mauro?
Mauro Singer: Fala, professor! A mão está molhada mas é de álcool. Tudo bem, meu irmãozinho? Vamos almoçar, quer aproveitar?
Filipe: Eu já almocei. Se você quiser almoçar, fique à vontade.
Singer: Não, eu já almocei, comi um bacalhau…
O Mauro Singer é uma espécie precursor dos influencers clubistas que fazem live no YouTube hoje em dia. Ele representava a torcida do Athletico em programas na TV local que misturavam mesa redonda com humor – como o Esporte Total, o Esporte Show e o Tribuna do Esporte.
Tribuna do Esporte/Rede Massa: [apresentador] Meu nome é Thiago, é o 5º fax que eu mando e não tenho resposta… Calma, estamos de férias… [Mauro Singer] É um bobão! Você acha que a máquina responde sozinha? Chega o fax e ela escreve sozinha ‘feliz ano novo’… Óh, você é tanso, nêgo!
Olha, eu não estou brincando: meia hora de papo com o Mauro Singer vale mais do que comer de graça na Velha Napolitana. Ele é um cara de resenha muito fácil.
E fez sucesso na TV justamente porque falava mesmo, sem se importar muito com a opinião dos outros
Ele já irritou muito os rivais…
Mauro Singer/Twitter: O coxa, quando perde, eles choram e limpam o nariz, que ficam com o bracinho duro. É gentinha. Vão cair de novo. Não tenham pena, não traiam seus antepassados [0’49]
– Mas já deu umas opiniões sinceras que pegaram mal com a própria torcida do Furacão –
Mauro Singer/TV Band: …pra mudar, pra mudar esses 85 anos de desgraça que acontece em Athletiba. Porque até hoje não teve ninguém que mudou. Ninguém. Nem A, nem B, nem C, nem o que esteve, nem o que está: nós entramos se borrando com o Coritiba, sempre foi assim
Quem frequentou a Baixada nos anos 2000, quando ela era vermelha, deve lembrar que tinha uma churrascaria Napolitana lá dentro.
O Mauro comprou o direito de explorar um ponto comercial na Baixada antes mesmo de o Petraglia assumir a presidência do clube.
Assim que o homem virou presidente, eles sentaram para conversar.
Mauro Singer: Daí a secretária me ligou, o Petraglia não era esse semideus que é hoje, né? Era um cara normal, mas era a mesma coisa, nervoso, atacado, irritado. Mas a palavra do Petraglia, pelo menos comigo, tudo que ele falou, ele fez, ele nunca faltou com a palavra. Apesar de ele ser um homem meio ruim. Ele nunca faltou com a palavra. Tá? Me ligou a secretária, vamos lá. Então entrei no Atlético, era um prédio que tinha bem na frente, ali na Rua Buenos Aires mesmo. Cheguei lá, sentei ‘ó, vim falar com o Mario Celso, meu nome é Mauro’, me encaminharam para a sala e tinha uma pessoa que estava na minha frente, entrou antes e ficou aberta a porta. Talvez seja Marcos. ‘Tudo bem Marcos, eu sou o Petraglia’. ‘Eu sei presidente’. ‘Me falaram que você quer falar comigo, o que que você quer de mim?’. ‘Não, é que eu defendi o Atlhetico em algumas questões aqui, tenho alguns honorários para receber’. O Petraglia olhou bem no olho dele: ‘me diz uma coisa, você tem algum documento disso?’. ‘Não, não, foi só na palavra”. ‘Pois eu vou te dizer uma coisa: se você tivesse documento, você teria que entrar na Justiça para receber, porque só exploraram o Athletico até hoje. Como você não tem documento, você retire-se daqui’. Fez assim cara. ‘Porra, Presidente’. ‘Eu não vou pagar nada para ninguém. Você é athleticano rapaz, ajudou o time, não fez mais que a obrigação’. O guri levantou bravo e foi embora. E um cara simpático, uma pessoa gentil, o menino. Falei pô, no próximo sou eu, né? Vou tomar no cu, vou me foder, mas não devo nada para ele, sei lá… ‘Tudo bem, presidente? Meu nome é Mauro’. ‘Pois não, você tem algum negócio com o Atlético?’. Falei ‘o antigo presidente, os diretores me venderam o direito ao ponto comercial aqui, mas se o senhor me disser que eu não tenho nada a ver, também levanto e vou embora, não vou acionar o Athletico, não vou porra nenhuma, porque sou athleticano, sabe, não vou entrar com uma ação contra.’ Ele esticou o pernão assim: ‘me falaram que você era gente boa’, bem assim. ‘Opa, tá bom, obrigado’. ‘Nós vamos fazer assim: isso aí que você fez, você perdeu, tá? Não quero nem saber o que aconteceu. Eu vou fazer um puta de um estádio aqui, vai ser um orgulho para a torcida e o restaurante vai ser teu. Você acredita na minha palavra?’, falei ‘acredito’. ‘Então, na hora certa eu te chamo’.
Aproveitando que o Mauro Singer fala o que pensa sem filtro, e que ele é de São José dos Pinhais, eu não podia deixar de perguntar a opinião dele sobre a desapropriação do Pavoc.
Mauro Singer: Mas o Pavoc, claro que o Pavoc foi uma benesse do governo do Estado com o Atlético. Isso não tem… os coxas vão dizer ‘mais uma benesse’. Mas essa eu acho que foi mesmo. Mas era uma terra de ninguém, viu? O Pavoc ninguém queria.Cara, essas coisas aqui, as pessoas do alto escalão, os políticos, os grandes empresários, eles sentam numa mesa, tomam um bom vinho e negociam. Nós, os mortais aqui embaixo, não vamos entender isso. Houve um acerto, foi bom, na época foi bom para o Athletico, parecia que não era bom também, enxergou lá na frente o Mário
E nesse momento da conversa, falando sobre futebol e política, o Mauro teve uma epifania, um “insight”.
Mauro Singe: Olha uma de torcida: ele levou o Jaime Lerner numa das inaugurações da arena, não essa, da Baixada velha, ele levou Jaime Lerner lá, e o Jaime Lerner, coxa, foi lá no meio de campo, a torcida não perdoou e foi “ei, coxa, vai…”, e cantou a musiquinha. Porra, ali, esse é o embrião da birra que o Petraglia tem com a torcida: que ele levou um convidado que ajudou a fazer, que ajudou no negócio do Pavoc e a torcida não recebeu bem. Ele esperava que a torcida tivesse consciência do favor que foi feito, mas não, “Ei coxa vai tomar Bidu”, entendeu? E ali, juro, olha que legal, veio do nada, ali começou a centelha do ódio dele contra a torcida do Atlético
Pois é. Na noite de 22 de junho de 1999, o Petraglia, como um bom político, convidou para inauguração da Arena da Baixada seus aliados: o prefeito Cássio Taniguchi e o governador Jaime Lerner.
Os dois tiveram lugar de destaque e posaram para fotógrafos e jornalistas enquanto tiravam o pano da placa de inauguração.
Jaime Lerner/CNT: Eu quero cumprimentar o Athletico por essa grande contribuição ao esporte brasileiro. E quero cumprimentar o presidente do Athletico, Mario Petraglia, pela ousadia, pela coragem de fazer um empreendimento como esse e fazer com que esse empreendimento desse certo. Os parabéns ao athleticanos e a todo o povo do Paraná.
Mas, diante do estádio lotado, o governador passou por um constrangimento que, eu diria, era previsível: ouviu a torcida rubro-negra dedicar a ele uma paródia de Pink Floyd, com uma letra elaboradíssima, em que a única rima é a palavra “cu”, dita três vezes.
Torcida Os Fanáticos: Atirei o pau nos coxa e mandei tomar no cu / Coxarada, filha da puta, chupa rola e dá o cu / Ei, Coxa, vai tomar no cu.
Você ouviu a opinião do Mauro Singer: esse momento teria sido a gota d’água. O Petraglia não viu graça nenhuma. Viu uma enorme desfeita da torcida, uma ingratidão a um parceiro político do clube que havia colaborado para a reforma do estádio.
Petraglia: O que adianta o cântico de mandar o Coxa para aquele lugar? O que soma isso? O que reflete isso? Só põe pra fora os recalques, os ódios que os torcedores, usando o futebol para este fim
E a partir daquela noite, então, a relação entre o Petraglia e a torcida, especialmente a organizada Os Fanáticos, nunca mais seria a mesma.
Rap Os Fanáticos 30 anos: …é de vermelho e preto nossa farda de batalha, batendo de frente até com o corno do Petraglia…
O Mauro Singer me contou um outro episódio que explica um pouco dessa relação Petraglia/torcida.
Hoje em dia a gente já está acostumado com estádios que levam nome de marca: Allianz Parque, Neo Química Arena, Itaipava Fonte Nova…
Só que nos anos 2000 isso não existia no Brasil.
O Petraglia foi até a Europa e os Estados Unidos e viu que esse modelo de patrocínio funcionava. Aí ele foi atrás de uma marca que pagasse para estampar o nome da Baixada.
E em março de 2005, ele anunciou o primeiro acordo de naming rights do futebol brasileiro, rebatizando o estádio para Kyocera Arena, numa parceria com a multinacional japonesa que durou três anos (até 2008).
Mas, durante as tratativas com a Kyocera, o time não vinha em grande fase, e a Fanáticos cobrava resultado, como sempre faz. E não pegava bem para os negócios ter uma torcida em clima de guerra com o time.
Então o Petraglia convocou o Mauro Singer para mediar um cessar fogo com os líderes da Fanáticos.
Mauro Singer: …onde o Atlético ia, a torcida aí atrás para vaiar. Então era Atlético e Londrina, punham faixa de ponta cabeça, etc, tava atrapalhando o negócio. Petraglia queria fazer negócio com a Kyocera. Ele não queria a vaia, em especial em Londrina, porque o patrocinador ia lá. E ele tá certo, o Petraglia. O filho da mãe, ele faz negócio bem feito. Ele só não é bonzinho. Ele não é um amor de pessoa, só que ele é o melhor presidente da história do Brasil de Clubes, não tem nada parecido. Ele é fodido. Ele não queria vaia lá porque podia atrapalhar o negócio. Porra, quem que não vai vaiar? Ele marcou uma reunião, ele falou ‘Mauro, você que conhece sei lá, teus amigos, marca uma reunião’. ‘Sem problema nenhum’. ‘Com o Suk e com o Júlio’. E marquei uma reunião. Pô, marquei lá no restaurante, né? A assessora de imprensa dele era a Luciana Pombo. Estava marcado uma terça-feira à noite e a Luciana ligou ‘Mauro, e a reunião quem vai?’. ‘Eu posso até participar, tô no restaurante trabalhando, o Júlio, o Suk e o presidente.’ ‘E a segurança do Presidente?’. Falei ‘Luciana, se eu estou trazendo os dois, não precisa de segurança’. E não precisa mesmo. Falei ‘Júlio, tudo bem?’, ‘Maurão, é convidado teu’. Foram super educados. ‘Mas o Petraglia falou da segurança’, ‘não precisa trazer, isso não existe. Nós vamos conversar’. E o Petraglia chegou antes. Eu achei aquele dia que o Petraglia tava nervoso. Eu achei. Tava diferente, tava mais falante que o normal, etc. Chegou Júlio, chegou Suk, começaram com as amenidades, e ele viu que o ambiente era calmo, daí ele relaxou. Daí ele voltou a ser o Petraglia. E a conversa foi bacana, porque ele pediu, ele foi sincero, o Petraglia é sincero, o filho da mãe. Falou ‘ó, nós estamos no momento decidindo com o Athletico, patrocinadores, vocês não estão ajudando, nós queríamos que vocês parassem, dessem uma trégua’. O Júlio falou ‘tudo bem. tudo bem, vai ficar tanto tempo essa trégua aí’, e ‘tá vocês querem em troca o quê?’, Isso aconteceu. ‘Nós queríamos voltar com a bateria, eterna bateria, a bateria da torcida é pouca coisa, não é para tanta briga. Queremos voltar com a bateria e com o caixote lá’, ele disse ‘tudo bem’. Já pegou o telefone ligou, tá liberou tudo. ‘E me diga uma coisa’, essa que é a parte legal da história, ‘vocês precisam de alguma ajuda para a bandeira, para material, alguma coisa, alguma ajuda financeira?’. O Júlio falou ‘precisamos sim, mas nós compramos com o nosso trabalho. O senhor não precisa colaborar com nada’. Ele falou que não queria. O Petraglia quis dar uma ajuda… ajuda simples também, não era uma fortuna. Não sei o quanto que era, mas o Julião imediatamente ‘não, porque nós precisamos, nós trabalhamos, e ponto. Não queremos nada do Atlético’, sabe? Foi um negócio legal do Julião ali. Se tem um malandro na história, morde o Petraglia. Não sei se o Petraglia daria ou não, mas o ideal era um malandro pedir dinheiro para fazer a paz. O Julião não quis. E acabou nisso, e realmente fizeram, e começou um período de trégua ali. Deu umas 15 partidas e brigaram de novo, né? Ah, perdendo o athletiba a torcida já mandou todo mundo tomar no cu e já fodeu de novo.
O Julião que apareceu nessa história é o Julio Cesar Sobota, mais conhecido como Julião da Caveira (ou, para os mais íntimos, Gordo, ou Gordão).
E ele é uma das pessoas mais intrigantes que eu já tive o prazer de entrevistar.
Você já ouviu a voz do Julião lá no primeiro episódio, dando um sufoco no técnico do Athletico pela péssima campanha, no estadual de 1995.
Dorival Chrispim/CNT: O técnico Sérgio Cosme chegou a ser cercado por torcedores.
Julião/CNT: Porra, se nós estamos aqui dentro é para ferver o calderão, não pra virar essa geladeria que tá virando com esse time aí. Tem cara que não sabe o que significa a Baixada pra nós.
O Julião é isso aí. A vida dele é o Athletico Paranaense. Ou, pelo menos, foi o Athletico.
Quando eu era piá, ele era o rosto da Fanáticos. O estádio todo sabia quem era o Julião. Ele se destacava pela autoridade no meio da torcida que ele presidiu por quase quinze anos – de 1999 até 2014.
O Julião tem o tronco, as pernas os braços… tudo tatuado, principalmente com caveira (o símbolo da Fanáticos) e bandeira do Brasil.
Hoje, com 54 anos, ele trabalha como segurança num condomínio residencial. E continua com um porte físico de respeito.
Mas, ao mesmo tempo, o cara tem uma simplicidade e um papo franco que te deixam à vontade logo de cara.
Julião: Posso te oferecer uma água, um suco de pacotinho, uma cerveja, um gole de vinho? Só que é vinho de veado, é vinho suave.
Filipe: Um copo de água pra mim tá excelente.
Eu diria que o Julião é a antítese do Petraglia. Os dois dedicaram a vida ao Athletico, mas de um jeito muito diferente.
O Petraglia é milionário, racional, frio, com planos de longo prazo, e vê o time (e o próprio futebol em si) como um negócio –é business.
O Julião é só paixão. Não tem outra palavra.
Ele foi eleito vereador em 2008 com 4 mil votos, mas nem por isso enriqueceu. O Julião mora numa casa simples no Novo Mundo, zona sul de Curitiba, num terreno que divide com a mãe, com a ex-mulher, com gato, cachorro e muita (muita) gaiola de passarinho.
E ele se entregou à vida de torcida organizada de uma maneira… estúpida. Ele cometeu um monte de erros, e não tem vergonha de admitir isso.
Julião: Mas eu vou te falar que, se hoje eu for por na balança, eu acho que eu mais perdi. Tenho vários amigos no Brasil inteiro, no mundão aí, mas, tipo assim, até né do que a gente vai conversar, do que o próprio Petraglia me falou em 2010… ele falou uma coisa que serve para mim hoje, entendeu? Talvez ele não tenha colocado em prática, né? Tudo isso, mas eu quando eu dei um passo para trás e de acordo com o que ele me falou é que eu realmente comecei a valorizar minha família. E esse foi o meu grande erro.
Filipe: O que que foi que ele te falou, e em que contexto que foi essa conversa?
Julião: Ele falou que futebol… Assim cara, que é burrice de vocês pegarem uma faixa, uma bandeira e ficar andando o Brasil inteiro assistindo o jogo, né, com o risco de morte, entendeu? Por uma coisa que é praticamente, vamos dizer… A copa do mundo Copa do Mundo é um evento única e exclusivamente com fins lucrativos. Entendeu? Todo mundo sabe… e ele me falou isso. Ele falou ‘cara, futebol é para quem tem dinheiro, e o futuro do futebol é para quem tem dinheiro’. Como quem diz assim: ‘pobre não vai ter espaço’.
Filipe: Ele te falou com essas palavras?
Julião: Exatamente: ‘Futebol é para quem tem dinheiro.’
Filipe: Eu não entendi qual foi a tua reação a essa essa fala dele. Você achou que isso te serviu bem ou mal?
Julião: Serviu bem. Porque daí, simplesmente, eu vi toda a burrice que eu fiz durante a minha vida inteira, que foi deixar, abandonar minha família. Eu saí de casa porque eu era viciado, enlouquecido, alucinado pelo Atlético. Até um dia que o meu pai e minha mãe chegaram pra mim e falaram: ‘cara, se você é tão doente assim pelo Atlético, por que que você não vai morar no Atlético?’ E o idiota, né? Eu tinha 20 anos. Eu peguei minhas coisas, camiseta – tinha muita coisa de certo né, um óculos, escova de dente, chinelo, calção, duas camisas do Atlético – e fui morar na salinha da torcida.
O Julião é um cara pacificamente violento (ou violentamente pacífico).
Ele sabe que tem um impulso dentro dele para resolver as coisas na base do soco (tipo o Lolô Cornelsen). Para evitar que isso aconteça, ele se isola.
Julião: Oh, meu Deus, me dá tranquilidade, me dá paz pra eu agir, né? Discernimento aí pra eu fazer a coisa certa, para eu não ir lá arrancar todos os dentes desse senhor…
Parece um pouco a estratégia de um dependente químico em abstinência, sabe? Que fica longe de bar e festa para não cair em tentação?
É por isso que o Julião não frequenta a Baixada há quase dez anos: se ele for, vai encontrar gente que não quer mais ver.
Julião: Eu não vejo essa proximidade de energia minha com a do presidente, entendeu? Eu sou torcedor, ele é empresário. Um ótimo empresário, bem sucedido, o cara é Ninja. Hoje eu vejo, mais do que nunca, que o cara tava certo num monte de coisa, mas eu continuo sendo torcedor, eu vou morrer torcedor, só que agora eu optei por não frequentar mais, por não fazer parte, entendeu?
Enquanto ainda era presidente da Fanáticos, o Julião teve que lidar diretamente com o Petraglia algumas vezes. E foi descobrindo que negociar com o homem não era brincadeira não.
Julião: Participei de poucas reuniões com Petraglia, mas na primeira reunião de diretoria da torcida com ele, me impressionou uma parada que ele falou o seguinte: chegou um diretor nosso lá que era meio metido a conhecedor. Falava bonito, fino, elegante, se vestia bem… daí ele chegou para o Petraglia, ‘então Presidente, a gente estava conversando sobre aquele assunto…’. Ele falou ‘Opa, desculpa te interromper, mas eu quero que vocês saibam de uma coisa: eu nunca sento numa mesa para conversar duas vezes o mesmo assunto. O que a gente decidiu aquela vez, tá decidido. Qual é o próximo assunto?’ Ele engoliu o cara assim. Eu fiquei de cara. Falei ‘esse cara é pica, é cara de palavra’. Senti firmeza
Como acontece em qualquer time do Brasil, a relação entre diretoria e organizada tem sempre algum grau de tensão.
Briga de torcida, perda de mando de campo, pressão em cima de jogador, cobrança por título, preço de ingressos, apoio nas eleições internas… tudo isso faz parte de um constante morde-e-assopra na cultura do futebol.
Mas, no Athletico, parece que tem um fator a mais: uma disputa negocial entre o clube e a Fanáticos.
Julião: Ele reconhecia a gente como concorrente direto e, queira ou não, a gente vendia bastante material, porque o nosso material sempre foi de um preço bem mais acessível, né? E daí a bronca dele era essa. Aconteceram várias situações de ele bater de frente com a torcida justamente pelos materiais serem mais acessíveis. Numa situação dessas, ele quis fazer um contrato, entre aspas, querendo comprar os Fanáticos, entendeu? Eu lembro que foi essa situação e daí eu não concordei eu falei. Ah, não pode. Falei ‘pô, a gente pode ser parceiro, entendeu?’
A partir da primeira gestão do Petraglia, o Athletico passou a adotar uma postura cada vez mais rigorosa em relação a produtos vendidos pela Fanáticos.
O clube faz valer seus direitos autorais para proibir o uso de símbolos do Athletico, e várias vezes barrou a entrada de qualquer material da Fanáticos dentro da Baixada – um golpe duro nas receitas da organizada, que depende muito da venda de material para conseguir alguma grana.
Isso porque o Petraglia também cortou qualquer tipo de apoio financeiro para as organizadas (que é uma prática ainda muito comum em outros clubes).
Segundo o Julião, a Fanáticos se adaptou a essa realidade e até fez questão de não aceitar mais qualquer regalia da diretoria.
Mas ele se lembra de uma exceção. Um dia em que o Petraglia precisou de apoio e bancou uma viagem para a Fanáticos.
Julião: A única vez que envolveu benefício para a torcida. Foi quando o Atlético estava… o Petraglia estava com um pepino nervoso aí lá na CBF e ele bancou ônibus, lanche e uma camiseta. Lembra dessa história?
No episódio que vem, a gente conta sobre o tal “pepino nervoso” do Petraglia na CBF. Um caso espinhoso que teve grampo telefônico, acusação de compra de arbitragem e que virou até CPI.
Marcelo Rezende/TV Globo: O senhor, em algum momento, recebeu algum telefonema pedindo algum tipo de apoio político, e também de apoio financeiro, dinheiro?
Petraglia: Absolutamente não. Telefonema Nenhum.
Petraglia/grampo telefônico: Alô.
Ivens Mendes/grampo telefônico: Mario Celso?
Petraglia/grampo telefônico: É.
Ivens Mendes/grampo telefônico: Eu tô precisando que você me mande hoje R$ 25 mil.
Petraglia/grampo telefônico: Liga para a minha secretária, a Marli, dá os dados para ela, que eu entro em contato com ela e providencio.
Eu sou Filipe Andretta e esse foi o segundo episódio do ‘Senhor da Razão?’, um documentário independente e não autorizado sobre Mario Celso Petraglia e o Athletico Paranaense.
Fazer um documentário com a seriedade e a qualidade dignas de um personagem do tamanho do Petraglia não é fácil. Leva muito tempo de pesquisa, entrevista, escrita, checagem, gravação, edição, divulgação etc.
Isso sem falar nos custos com equipamento, estúdio, deslocamento e serviços em geral contratados para levar esse podcast até você.
Nós planejamos seis episódios para contar essa história, mas vamos precisar da sua ajuda para publicar todos eles.
Se você puder, contribua com qualquer valor. É muito fácil. O link está no nosso site, senhordarazao.com.br (“Senhor da Razão” tudo junto, sem tio e sem interrogação).
Ou você pode ir direto no apoia.se/senhordarazao.
Quem contribuir com R$ 70 ou mais, terá duas recompensas:
A primeira é o acesso a um episódio exclusivo, que será lançado mais para a frente, com entrevistas e detalhes que não couberam nos roteiros.
A segunda recompensa é o acesso a um número de WhatsApp da produção. Lá você pode xingar o documentário (pode elogiar também), pode contar uma história relacionada ao Petraglia, compartilhar alguma curiosidade… enfim, pode mandar o que você quiser.
E se você autorizar, o seu comentário pode entrar em episódios extras, que serão publicados durante a temporada.
Dê uma força também seguindo o ‘Senhor da Razão?’ no seu tocador de podcast, no Instagram, Facebook, Twitter e Tiktok.
Assim você fica sabendo quando vier episódio novo e acompanha os debates sobre o perfil de Mario Celso Petraglia.
Se você foi citado e quer se manifestar, se identificou algum erro na nossa apuração ou quer falar conosco por qualquer outro motivo, por favor, mande um email para contato@senhordarazao.com.br.
Esse documentário tem pesquisa, produção, entrevistas, locução, roteiro e edição sonora de Filipe Andretta.
As locuções foram gravadas com o apoio da Arnica Cultural, em Curitiba.
A revisão e checagem são da athleticana Clara Vicente.
A vinheta e as trilhas sonoras são do palmeirense Vinícius Antunes, com áudios da soundstripe e da artlist.
O site e a identidade visual são do flamenguista Fabricio Vinhas.
A assistência de produção é do athleticano André Carneiro.
E a voz na leitura de documentos é da Andreia Porto, que não torce para ninguém.
Além de trechos de entrevistas exclusivas, esse episódio usou áudios de:
- Projeto Humanos
- UFPR TV
- Crônicas de um Vovô Coxa
- Rádio Clube
- Memória Paraná
- Gazeta do Povo
- GRPCom
- Canal de José Wille
- Fox Sports
- Rede Massa
- SporTV
- TV Band
- CNT
- Torcida Os Fanáticos
- TV Globo
Até a próxima.